sábado, 29 de novembro de 2014

Mulheres cientistas: o mito da igualdade de gênero (e de unidade estética) na Índia propagado por uma foto. E o que podemos aprender com o equívoco


Toda vez que vejo uma mulher defender #Gandhi, a tristeza toma conta de mim. Um homem que textualmente usava a desculpa de sua religião para culpar a mulher por todos os males de uma determinada comunidade de castas inferiores. Ele, de casta superior, sempre foi segregacionista e nunca, em hipótese alguma, cogitou aceitar a igualdade entre gêneros e cidadãos de origens diferentes.

Um trecho do paper "Science and Society: The perspective of an Indian woman scientist”, da cientista e ensaísta indiana Anita Mehta, deixa claro o que quero dizer.

(…) On the contrary, it is often, unfortunately, those who are themselves discriminated against, who transmit this discrimination to people more vulnerable than themselves. Two examples, both from a social rather than a scientific background, come to mind: one concerns Mahatma Gandhi's statement when he was told that a certain villager (an untouchable, or 'Harijan', as Gandhi termed members of this caste) epitomized the lowest of the low in India, being poor and socially at the bottom of the pyramid. No, said Gandhi, it was not this villager who epitomized the lowliest of the low in India, but the villager's wife…. (…)

Ao contrário do odioso Ghandi, Dr. B. R. Ambedkar, o grande jurista e defensor dos direitos humanos na India (mas que não atingiu o status arquetípico e globalizado de “bondade” de Gandhi) sempre pontuou que o domínio do hinduísmo foi a derrocada do feminino na India. E esse triste legado está vivo até hoje.

O papel de Gandhi foi fundamental na aceitação global e na manutenção do sistema de castas como algo "natural" na cultura indiana. Não é. Em 2500 A.C. antes da religião HIndu tomar conta do país, o sistema de castas não existia. Os homens eram mestres dos serviços domésticos e dividiam tarefas com as mulheres. Mais: a sexualidade livre de ambos tinha importante papel nas relações sociais de igualdade, não sendo assunto "proibido". A educação, conhecimento e paticipação política e social das mulheres era igualitária a dos homens.

O sistema de castas sepultou a igualdade. E até hoje as mulheres indianas sofrem uma forte opressão. Pior: tornam-se opressoras quando pertencem às castas superiores (ou quando sendo de castas inferiores, conseguem romper as barreiras e ocupar espaços junto à elite científica) e nada fazem para mudar a história. São 250 milhões de Dalits. A maioria, mulheres. Imaginem uma população do tamanho da brasileira sendo oprimida? É a India hoje. 

A grande maioria das mulheres cientistas da India, incluindo aquelas que apareceram na foto icônica que correu o mundo, são de castas que oprimem as demais. Mesmo com os processos de #açãoafirmativa (tanto para assegurar o acesso do sexo feminino aos centros de educação superior, quanto para elevar o padrão educacional das castas ditas inferiores e repatriar cérebros), a situação não mudou. 

Pior: para tornar mais fácil o acesso a universidade, muitas mulheres de castas superiores usam nomes e endereços de mulheres de castas inferiores, roubando-lhes as vagas.

Uma vez na improvável situação de dividirem o mesmo espaço na comunidade científica, as mulheres indianas das castas superiores juntam-se aos homens na opressão às mulheres mais pobres, cedendo ao “clubinho fechado da ciência”.

Por isso aquela foto que correu o mundo quando a sonda indiana Mangalyaan chegou à Marte (ingenuamente alavancada pela falta de análise das instituições ocidentais que advogam a maior participação da mulher em todas as atividades humanas) deixou de ser uma excelente oportunidade para a discussão de papéis sociais e sobre como indivíduos comprometidos podem proporcionar mudanças. 


Uma pena que o foco tenha ficado na estética imediata (naturalmente que mulheres cientistas na Suécia, EUA, Inglaterra, Trindad e Tobago, Brasil, China, Japão, Africa do Sul, Nigéria teriam aparência diferente, de acordo com o caldo miscigenatório de cada nação), na aparência física das indianas (outro traço de preconceito, que passou batido. Falarei sobre esse tema da estética feminina em outro texto). Perdeu-se a oportunidade de traçar um paralelo com a nossa cultura (e demais culturas ocidentais que tratam o brilhantismo feminino como exceção, quase como se fosse uma surpresa).

Faltou o cuidado de notar que nenhuma daquelas mulheres da foto poderia ser uma #Dalit ou membro de casta inferior  por exemplo, bastando para isso o cuidado de identificar a postura, os sobrenomes (disponíveis no site da ISRO), trajes, roupas, adereços e acessórios.

Ao compartilharem a foto, muitas mulheres esqueceram de ler o texto que a acompanhava. A engenharia de sistemas espaciais Minal Sampath, diz: “I forget I am a woman sometimes, working in such an organisation”, falando de seu trabalho junto aos homens na Indian Space Research Organisation. 

Está claro: apesar da aparência, a sensação delas, mesmo pertencendo às castas superiores, é de que precisam anular-se como mulheres, mero reflexo do sistema social no qual estão inseridas. As mulheres, que são vitais por seu conhecimento aliado a características vitais para o trabalho em tecnologia, como a inteligência emocional e atenção ao detalhe, são apenas 20% da força de trabalho entre os cientistas. Nenhuma delas é Dalit.

Em 2009, uma pesquisa através do Web of Science (WoS), banco de dados científicos da agência Thomsom-Reuters, avaliou 9.957 papers publicados pelos principais institutos de ciência acadêmicos da India. Apenas 340 tinham sido produzidos apenas por mulheres. 4.671 papers eram colaborações entre homens e mulheres cientistas, mas com participação menor delas. E dos papeis que tiveram circulação internacional, 

Mas nem tudo está perdido. A história social da ciência precisa dessa análise e vontade de entendermos como NÃO é impossível mudar o jogo, aqui, no continente africano, na India e no resto da Ásia.

Para isso, é preciso despir-se do corporativismo que tem tornado toda mulher "uma igual" no combate a desigualdade e suas consequências. Infelizmente existem muitas mulheres opressoras, inclusive entre aquelas que se dizem progressistas e são consideradas líderes na mudança.

Deixar as distorções no foco esvaziarem a causa não traz benefícios e esvazia as discussões pertinentes as ações que podem ser tomadas em curto e médio prazo, sem depender do Estado ou das instituições. São mudanças que acontecem dentro de casa, na forma como pais passam para suas filhas as melhores formas de combater e superar adversidades, sejam elas impostas pelo gênero ou origem social.

Usar o discurso de “só uma mulher pode saber o que sofre” tampouco ajuda na superação dos problemas, aumentando o isolamento e propondo uma autosegregação baseada em gênero e na coletânea de experiências inatas.

Ainda é possível mudar. 


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