quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Não podemos salvar 1600 sírios mortos. Mas podemos reduzir a morte anual de 300 mil mulheres. Vale? Por Felipe B

Supostamente, um crime de guerra matou 1600 homens, mulheres e crianças sufocados com gás. Ficamos chocados.

Tá.

Estamos escravizados pela noção do valor da vida humana de acordo com o impacto midiático. Não, não se trata de sermos burros ou culpados. O produto midiático é cuidadosamente pensado para ter esse efeito, chocar, anestesiar, nos tornar impotentes, em todas as demografias possíveis.

Assim, sofremos mais com o suposto crime de guerra no qual morreram 1600 pessoas do que com as 300 mil mortes anuais de mulheres com câncer no útero. E o mais impressionante é que, de fato, podemos ajudar a reduzir essa mortalidade feminina absurda. E podemos fazer isso apenas com palavras, até mesmo fora do Facebook e das demais redes sociais.

Para isso, é preciso saber ouvir o outro, entender o que impede essas mulheres de fazer exames preventivos e, a partir dessa compreensão, estabelecer uma empatia que permita sermos "invasivos do bem" e trocar ideias que possam ajudá-las a salvarem suas vidas. E ainda mais importante: que se tornem multiplicadoras, seja em suas próprias famílias, seja em suas comunidades.

E os desafios são muitos. 95% dos casos de câncer no útero demonstram que o vilão é o HPV. 70% deles causados pelas cepas HPV 16 e 18.

E para falar de HPV temos que conversar com mulheres estranhas sobre seus hábitos sexuais. E, muitas vezes, elas tratam os próprios hábitos sexuais como apenas mais uma tarefa doméstica, uma consequência do matrimônio ou da relação estável na qual estão envolvidas.

Nosso cenário: 35% das mulheres brasileiras nunca fizeram exame papanicolau.

Me assusta imaginar quantas não sabem o que é HPV e desconhecem sua relação com o câncer no colo do útero.

Se já é difícil levantar uma questão que envolva sexo e sexualidade com mulheres urbanas, descoladas, educadas, de classe média, imagine então ter que dialogar e ouvir mulheres da zona rural, muitas delas sufocadas por barreiras de cunho religioso e moral?

É uma dificuldade que precisa ser vencida se quisermos ajudar as mulheres a viverem com saúde.

E isso, sim, é mais importante do que especular sobre uma matança na guerra. É uma atitude humanitária que está ao nosso alcance. Conversar e empoderar mulheres de todas as demografias antes do condilomas surgirem.

Para começar, é preciso que se faça um ajuste da linguagem, se queremos quebrar barreiras.

Não tente entrar numa comunidade de prostitutas, por exemplo, e começar a falar de genitais sem empregar termos populares. Se quer ajudar, acostume-se a falar e ouvir sem choque como aquelas mulheres lidam com suas "bucetas", "rachas", "xoxotas", "buracos". Não é para chegarmos lá "cagando regra". É para entendermos como pensam e agem em seus cotidianos para que possamos conversar e disseminar informação útil para que se previnam. Para que possam estabelecer práticas entre seus clientes e parceiros que as preservem.

Vejam bem: para muitas dessas mulheres, o que acontece dos lábios vaginais para dentro é uma incógnita e raramente motivo de preocupação. Elas estão mais preocupadas com o que conseguem enxergar e ainda assim, dão preferências as análises visuais. Feridinhas e manchas. Nelas ou nos parceiros. Ainda assim, contaminam-se com frequência com DSTs que já deveriam estar extintas, como sífilis e gonorréia. E continuam a trabalhar assim.

Ou seja, falar de HPV é quase como falar de astronomia. Precisamos simplificar. E não adianta dar cartilha para quem não sabe ler. Adianta ouvir, atentamente. E a partir daí, conversar longamente. Sem pudores, sem pressa. Em todas as oportunidades possíveis. Até que a importância da prevenção e da higiene entre os atos, além do emprego das barreiras físicas esteja disseminado em seus repertórios, em sua própria linguagem.

Com as religiosas e as que tem barreiras sócio-morais mais rígidas, a situação é complicada, mas não impossível.

Ouvir. Descobrir quais são as brechas. O método de investigação ai é muito próximo daquele usado com mulheres que sofrem abuso sexual doméstico, mas não o percebem dessa forma. Estamos falando de mulheres que, em 2013, jamais questionaram seus marido e companheiros sobre seus hábitos sexuais fora do casamento.

São mulheres que, hoje, não tem estratégias de defesa, esperteza, para evitarem que um pau contaminado chegue da rua,  seja da amante, seja do puteiro, e entre direto dentro de suas bucetas. Não é preciso conflito nem quebra de paradigmas, o que seria uma utopia. Mas podemos, sim, disseminar esse "jogo do eu primeiro".

Se elas, infelizmente, não podem ou não querem dizer não, e se o uso da barreira física é impossível (seja camisinha feminina ou um diafragma, seja camisinha no marido ou companheiro), que usem o banheiro e apliquem um gel vaginal antiviral lá dentro, antes da relação começar. Defesa, defesa, defesa. Sabemos que é difícil. Mas podemos desistir?

Se existe um mínimo de diálogo, que se "insufle" o ego masculino, dizendo que o pau dele vai ficar "mais bonito e maior" se circuncidado. Vejam, não se trata aqui de redefinir os comportamentos íntimos e relações de gêneros. Tampouco de  promover abstinência sexual. Mas o ego masculino (e o machismo por ele gerado) mata mulheres. Ponto.

Trata-se de salvar mulheres, antes de tudo. Sim, pode ser um começo de mudanças nas relações, mas não posso ser ingênuo a ponto de achar que vamos salvar o mundo em um pacote só. Quero primeiro salvar vidas. E não provocar que essas mesmas vidas venham a ser perdidas por um tiro ou facada de um machista.

É importante que essas mulheres construam um "repertório de guerrilha", que salve primeiro os seus corpos e das suas iguais, que possa ser disseminado em toda as oportunidades de conversas femininas, seja na quemese, seja na hora da reunião com a consultora da Avon. Estão sozinhas, podem conversar, que coloquem essas questões em pauta.

Da mesma forma não adianta tentarmos "moralizar" as jovens mulheres que usam o corpo como ferramenta de aceitação social, seja no ambiente urbano (as meninas do funk…), seja no ambiente rural. Precisamos jogar com as palavras dela. Sim, é bacana educação sexual em sala de aula, mas é preciso ouvir essas meninas no ambiente privado, no olho no olho, estabelecer um jogo de confiança e promover a aproximação delas com as mulheres de suas famílias, para que construam mais do que discursos repetidos.

Elas precisam construir estratégias de defesa. Precisa ser normal uma mãe, tia ou irmã mais velha poder dizer para as meninas da família que aquela saída estratégica para uma "mijadinha" depois do ato sexual é uma atitude obrigatória, já entrando naquelas estratégias simples de cuidados pessoais, para livrar-se de secreções masculinas prejudiciais. Obviamente, não "limpa" tudo, mas é melhor do que nada.

E que esse repertório chegue logo aos ouvidos das meninas de 10,11 anos de idade. E que chegue como "boas práticas" aos meninos de 8,9, 10, 11 anos. A única maneira de mudar esse cenário é ter uma geração de homens que não aprenda a ser menos machista conceitualmente, mas sim na prática, no cotidiano. E, principalmente, em sua noção de relações íntimas. Meninos que aprendam, desde cedo, a observarem-se e entenderem que podem estar seguros ou não para ter contato com uma mulher.

Passar de mãe pra filho que higiene é mais importante do que beijar bem. Do que tamanho de pau. Tem que começar em casa. Meninos precisam saber que prevenção contra o HPV é OBRIGAÇÃO DE TODO HOMEM. E quem tem que colocar isso na cabeça dos meninos, desde cedo, é a família.

E, até onde sei, meninos novinhos, bem novinhos, costumam escutar suas mães. Nossos meninos precisam saber (e disseminar, e repetir para os amigos, e tornar esse conhecimento senso comum entre a molecada) que metade dos homens do planeta tem HP e boa parte desses levam consigo o HPV 16 e 18, os vilões invisíveis que matam as mulheres que amamos. E que nos matam também, quando os recebemos de volta, inclusive via sexo oral (câncer na boca e garganta…).

Abro uma digressão para falar de um cenário ainda mais delicado: relações lésbicas, sejam elas dentro de um ambiente urbano repleto de informação ou na obscuridade de um Brasil rural preconceituoso e hermético (tá bom, nossa cena urbana não difere muito nesse sentido).

Convivo intimamente com mulheres lésbicas e bissexuais há 25 anos. Em todos os tipos de relação e conjunção que possam imaginar: casais, trios, mulheres que trepam com outras e outros, mulheres que são fiéis, mulheres que são promíscuas, mulheres envolvidas em relações de poliamor. Em comum a esse caleidoscópio de possibilidades erótico-afetivas está o fato de que todos temos segredos. E em relações lésbicas, alguns segredos beiram o tabu.

Falamos de violência física e moral contra as homossexuais, mas não falamos das intra-violências das relações, como guardar segredo sobre o uso compartilhado de consolos, vibradores ou mesmo penetração com homens fora das relações "oficiais". O jogo do segredo, no campo comportamental não será questionado aqui. Todos temos.

Mas quando a saúde feminina está em jogo, quando existe incerteza quanto à saúde da parceira eventual, manda o bom senso preservar a outra. E nós sabemos que quando a tequila faz efeito, a última coisa que fazemos é um exame detalhado ou checagem de antecedentes. E entre mulheres, aquele "banheirão" ou "perdido" eventual são ainda mais frequentes do que em relações heterossexuais. Sim, aquela dedada inocente na desconhecida e a sacanagem suprema de enfiar a mesma mão na menina que você fica/ namora, que te encheu de orgulho na balada e apimentou a relação de vocês é um comportamento de risco. E, sim, é importante pensar nisso. Muito.

Ah, meninos, ainda na mesma digressão: o HPV também é vilão quando se fala de câncer anal. Não, não fuja do assunto não. É fato. Ou seja, se a sua praia é pau, pulso, brinquedos, cinemão, banheirão, dark room, fique ligado: você sabe que não vai dar conta de adivinhar quem tem e quem não tem, não é mesmo? Porra, brother, tu é inteligente. Morrer de tesão não é o mesmo que deixar o tesão de matar. Pense nisso.

O mesmo vale para as meninas mais novas que envolvem-se em jogos sexuais: realmente acredito que o repertório que assegure a defesa do corpo tenha que ser desenvolvido e disseminado antes que a vida sexual ou os jogos de afirmação social (com sexo, bebida, alteradores de consciência…) se iniciem.

Eu quero que minhas filhas possam trepar com as mulheres e homens que elas escolherem, mas munidas de todas as estratégias para que possam fazer o que quiserem sem perder o prazer espontâneo ou prejudicar a saúde. E que possam disseminar essas boas práticas entre seus parceiros e parceiras.

A gente pode e deve ajudar a reduzir essa mortalidade absurda de mais de 300 000 mulheres por ano. Mas temos que ter coragem. E senso de indignação. O mesmo que demonstramos quando assistimos uma matança como essa na Síria.


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